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Autismo em mulheres: Quando a camuflagem social atrasa o diagnóstico

Embora o autismo seja o mesmo, ele costuma se manifestar de forma diferente em mulheres, e isso ainda é pouco reconhecido. Muitas desenvolvem o que chamamos de camuflagem social: um esforço consciente (ou não) para copiar comportamentos socialmente aceitos, mascarar dificuldades e “parecerem normais”. O resultado? Um diagnóstico que chega tarde ou nunca chega.

No blog, falamos sobre por que isso acontece, quais são os sinais mais comuns nas mulheres autistas e a importância de olhar para o espectro com mais sensibilidade e informação.

A sub-representação feminina no diagnóstico do autismo

Durante décadas, o autismo foi estudado a partir de populações predominantemente masculinas, o que moldou tanto os critérios diagnósticos quanto a compreensão pública e clínica do transtorno. A consequência disso é que o “perfil clássico” do autismo — com interesses restritos, dificuldades de linguagem e interações sociais mais objetivas — está mais alinhado ao comportamento observado em meninos, e não necessariamente em meninas.

Pesquisas recentes demonstram que o número real de mulheres autistas é muito maior do que os dados atuais sugerem. Um estudo publicado na revista Journal of the American Academy of Child & Adolescent Psychiatry (2018) apontou que meninas tendem a ser diagnosticadas com anos de atraso em relação aos meninos, mesmo quando os níveis de suporte necessários são semelhantes. Muitas só recebem o diagnóstico na fase adulta e frequentemente após passarem por diversos diagnósticos equivocados, como ansiedade, depressão ou transtorno de personalidade.

Esse apagamento estatístico e clínico impede que mulheres tenham acesso precoce a suporte adequado, aumentando o risco de adoecimento mental, baixa autoestima, burnout e isolamento social.

O que é camuflagem social  e por que ela é mais comum em mulheres autistas?

A camuflagem social (ou masking) é uma estratégia de adaptação que envolve suprimir comportamentos autistas e imitar comportamentos socialmente aceitos para “se encaixar”. Trata-se de um esforço, muitas vezes inconsciente, para parecer “normal” aos olhos dos outros, evitando julgamentos, rejeições ou exclusões.

Essa prática pode incluir:

  • Ensaiar mentalmente falas e interações sociais antes de conversas;
     
  • Forçar contato visual, mesmo que desconfortável;
     
  • Copiar entonações, gestos ou expressões de colegas;
     
  • Suprimir movimentos repetitivos (stimming);
     
  • Adotar interesses e comportamentos de pessoas do convívio social para se misturar.
     

A camuflagem costuma ser mais frequente e mais intensa em mulheres, possivelmente devido à maior pressão social para que elas sejam agradáveis, empáticas e sociáveis desde a infância. Como resultado, muitas desenvolvem, desde cedo, uma habilidade sofisticada de imitar padrões sociais, o que dificulta ainda mais a identificação do autismo.

No entanto, esse esforço constante tem um custo. Um estudo publicado por Mandy et al. (2019), da University College London, revelou que altos níveis de camuflagem estão fortemente associados à exaustão emocional, depressão, crises de identidade e ideação suicida. O que à primeira vista parece “funcionalidade”, na realidade, é frequentemente um mecanismo de sobrevivência emocional desgastante.

Como o autismo pode se manifestar de forma diferente em mulheres?

As diferenças de manifestação do autismo em mulheres são reais e importantes,  embora ainda pouco reconhecidas nos sistemas de saúde. De modo geral, as meninas tendem a apresentar um quadro menos “clássico”, mais internalizado, com menos comportamentos externalizantes.

Entre os traços mais comuns, podemos destacar:

  • Alta habilidade verbal: mulheres autistas muitas vezes possuem boa fluência verbal e vocabulário sofisticado. Isso mascara dificuldades profundas na comunicação não verbal e na leitura de contextos sociais.
     
  • Empatia intensa e sensibilidade emocional: muitas relatam absorver sentimentos dos outros de forma avassaladora, o que pode confundir clínicos, já que há um mito de que pessoas autistas não sentem empatia.
     
  • Hipersensibilidade sensorial: roupas desconfortáveis, barulhos altos, luzes fortes, toques inesperados ou cheiros intensos podem causar angústia intensa, embora raramente sejam verbalizados.
     
  • Forte autocrítica e perfeccionismo: por perceberem que são “diferentes”, muitas mulheres tentam compensar com padrões elevados de desempenho, o que pode levar ao esgotamento.
     

Essas características não se encaixam nas definições tradicionais do TEA. Isso aumenta o risco de que sejam atribuídas a transtornos de humor, TDAH ou traços de personalidade, atrasando o diagnóstico correto por anos ou décadas.

O impacto do diagnóstico tardio: quando o alívio vem depois da dor

Receber o diagnóstico de autismo já na vida adulta pode ser ao mesmo tempo doloroso e libertador. Por um lado, há o luto por uma vida vivida sob incompreensão e esforço constante para se adaptar. Por outro, há alívio: a sensação de que, finalmente, existe uma explicação coerente para tantos sentimentos de inadequação, fadiga social e crises emocionais ao longo da vida.

Durante anos, essas mulheres enfrentam dificuldades sociais, desafios sensoriais, flutuações emocionais, além de um cansaço mental constante sem saber a causa real e, por isso, sem o suporte certo. Em muitos casos, elas acumulam diagnósticos psiquiátricos equivocados, uso excessivo de medicações e sentimentos de culpa ou autodepreciação.

Estudos como o publicado na Autism Research (2020) indicam que mulheres diagnosticadas na idade adulta relatam significativa melhora em sua qualidade de vida após o diagnóstico, mesmo sem grandes mudanças externas, apenas pelo autoconhecimento e pela validação de suas experiências.

O reconhecimento permite que essas mulheres parem de se moldar a padrões inatingíveis. Assim, elas passam a buscar ambientes, relações e rotinas mais alinhadas com suas necessidades reais.

O que pode mudar: caminhos para uma escuta mais sensível e eficaz

Para que mais mulheres recebam um diagnóstico correto e possam acessar os cuidados necessários, é fundamental que a comunidade médica e a sociedade como um todo mudem a forma de olhar para o autismo.

Isso inclui:

  • Atualização dos critérios diagnósticos: eles precisam considerar as manifestações femininas e a presença da camuflagem social como critério relevante.
     
  • Valorização do relato subjetivo: a escuta empática e a investigação cuidadosa da história da paciente são ferramentas essenciais, especialmente quando os comportamentos observáveis não parecem “típicos”.
     
  • Combate ao estigma: desmistificar o autismo e combater estereótipos é urgente para que mulheres se sintam seguras para buscar apoio, mesmo que não se “pareçam” com o que a sociedade imagina ser uma pessoa autista.
     

Incluir a vivência feminina nas pesquisas, nas conversas e na escuta clínica não é só uma questão de equidade, é uma necessidade para garantir diagnóstico, acolhimento e autonomia.

O autismo também tem voz feminina

Falar sobre o autismo em mulheres é romper o silêncio que há décadas invisibiliza histórias, sentimentos e experiências reais. A camuflagem social cobra um preço alto da saúde emocional e física de quem vive no esforço constante de “se encaixar”.

Quanto mais entendermos sobre as múltiplas formas de manifestação do autismo, mais cedo poderemos acolher essas mulheres com respeito, escuta e informação. O diagnóstico não é um rótulo, é uma chave que abre portas para compreensão, cuidado e qualidade de vida.

Que esse conhecimento gere transformação e que mais mulheres encontrem, no autoconhecimento, a liberdade de serem quem realmente são.